Procurando alguma poesia para minha avó, achei esse texto. Gostei e postei.
Texto de Gê Muniz
Era todo prateado. Parecia-se com o assento especial de uma confortável nave interestelar e caberiam nele ao menos três astronautas. O móvel tinha acabado de entrar pela porta da sala da casa de minha avó. Na verdade era um sofá velho que fora reencapado com um tecido em tom prata ou chumbo rutilante, de gosto extremamente duvidoso mas que, para a época, deveria ser o máximo em modernidade. Nem pensei duas vezes e um abraço: aquela maravilha merecia uma decoração ainda mais rica. Saquei um pedaço de giz de cera vermelho da minha surrada caixinha de lápis e, com esmero próprio de um ser de um metro e pouco, desenhei motivos infantis daqueles que só as crianças adoram dar de presente às paredes caiadas, exceto que utilizando para isso o encosto do sofá. Demorei um bom tempo com o desenvolvimento conceitual da composição, mas terminei por falta de lugar no encosto para mais. E olhe que mais espaço ali houvesse, eu poderia compor facilmente um famoso mural, tipo... Guernica. Decepção: minha obra não foi em nada apreciada pelo tanto de tapas na mão e no bumbum que tomei quando minha avó e minha mãe entraram na sala e deram de cara, estupefatas, com a obra, ainda quente, pronta. E olha, elas se revezavam nos doídos safanões. Nunca mais as "senti" assim. Concordo que abusei. Meu afresco era "muito informação" para as duas. Depois do impacto inicial, ficaram de par, uns bons minutos digerindo desoladas os grossos rabiscos impregnados no sofá, como fazem hoje os críticos de arte abstrata - Vamos tentar limpar estes rabiscos, Lene – disse minha avó, primeira e última a falar em tom empastado, para minha mãe. Enquanto eu assistia com os olhos esbugalhados do choramingo decorrente dos tapas, as duas procuraram eliminar os riscos de cera, desesperadamente, por longo, longo tempo... Mas eu era melhor. Acontece que acertei na mosca quanto ao material utilizado naqueles desenhos, pois, se feitos com caneta esferográfica creio que não fosse tão dificultoso de serem apagados e não deixassem tantos sulcos profundos no estofado. Depois de um longo tempo gasto com várias tentativas infrutíferas as duas sentaram-se sobre as minhas maravilhosas figuras destacadas no sofá, prostradas e vencidas pela alta qualidade e tecnologia do trabalho realizado por mim. Por muitos anos ainda pude apreciar enquanto crescia aquele sofá prateado encardindo sem perder as marcas definitivas de meus traços artísticos, como um legado à família. Devo ter sido pintor rupestre dos bons em outra encarnação...
[Quero o meu sofá mural de volta.
Quero meu giz de cera
vermelho de volta, aqui, nas minhas mãos.
Quero poder fitar a minha avó e minha mãe
nos olhos, droga...
Queria chorar só com dor de tapas da mãe,
como é bom...
Choraria entre sorrisos com os tapas dela,
surpreso e grato por tudo apanhar de volta
entre as faces de meu bumbum mancebo]
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